Solidão

ImensaMente
3 min readSep 8, 2020

por Stephanie Correia

Hoje li um artigo da revista The Paris Review que começa com “A quarentena me fez uma mulher mais solitária, mas eu sempre tive comigo a herança da solidão de outra mulher.” (tradução livre minha). Em Inglês há dois termos que comumente traduzimos ambos para o Português como “solidão” (a saber, são eles “solitude” e “loneliness”). Eles descrevem sentimentos diferentes: um deles fala de um sentimento de solidão que muitas vezes se estabelece de maneira voluntária, estar sozinho porque se quer, vontade em ato; enquanto outro fala de um sentimento muito mais triste, menos de autopreservação e mais de exclusão do mundo por ele imposta.

A frase reverberou fortemente em mim, pois sinto que sempre fui uma mulher solitária no seu primeiro sentido. A quarentena me caiu muito bem pois sempre convivi agradavelmente apenas comigo mesma, imersa em pensamentos que surgem de maneira fluida e natural, muitas vezes desencadeados por excitantes leituras. Inclusive, brincaram que eu nasci para a quarentena! Porém, eu também compartilho a solidão que me foi herdada da minha avó. Essa solidão é a do segundo tipo: minha avó foi uma mulher solitária, sozinha. Também como no artigo, ela foi uma mulher imigrante, que saiu do seu país assim que se casou, deixando para trás a sua família. Veio para o Brasil para construir a sua própria família e aqui ficou. Ela chegou a viajar algumas vezes de volta para a aldeia que nasceu em Portugal, para visitar sua família, mas estabeleceu suas raízes aqui. Estabeleceu-as de maneira solitária. Minha avó nunca me disse de maneira explícita que se sentia sozinha, mas, olhando hoje de maneira retrospectiva, acho que foi sim uma mulher sozinha. Sozinha e solitária, em ambos os sentidos da solidão. Foi nessa dualidade que me identifiquei, foi nessa dualidade que aprendi sua força, força essa que tanto admiro e tanto me inspiro, que tanto almejo.

A solidão do segundo tipo, herdada da minha avó, em mim reverbera através da intrinsecabilidade da existência humana (por natureza, solitária). Ainda no mesmo artigo, um trecho do romance Middlemarch de George Eliot é destacado e que eu, particularmente, o considerei belíssimo para tratar da solidão humana: “Se tivéssemos uma visão e sentimento aguçados de toda a vida humana comum, seria como ouvir a grama crescer e os batimentos cardíacos de um esquilo, e morreríamos daquele rugido que está do outro lado do silêncio.” (tradução livre minha). A vida humana comum, nossos cotidianos, são assim levados como absolutamente naturais e, caso parássemos para olhar atentamente para ele seria quase como escutar a grama crescer: apreensível. Caso conseguíssemos tal feito, o silêncio não mais o seria, mas sim, barulho estrondoso e visceral.

Olhar para as coisas tidas como menores da vida pode, assim como a solidão, ser dual: elas são avassaladoras mas também riquíssimas de significado, justamente por serem paradoxalmente profundas. A quarentena nos trouxe a oportunidade de olharmos para aquilo que já estava no piloto automático, nos trouxe a oportunidade de refletirmos sobre a execução repetida e irrefletida dessas coisas — trouxe a oportunidade de ver, sentir e de fato desejar aquilo que faz verdadeiramente sentido para cada um de nós.

Durante o período de isolamento social, posso afirmar que não me sinto sozinha. Talvez por, diferentemente de minha avó, ter minhas primeiras raízes aqui, sinto-me cercada de pessoas amorosas e atenciosas, mesmo que à distância. Pude aprofundar os relacionamentos verdadeiramente importantes para mim mas, principalmente, pude estreitar os meus laços comigo mesma.

Continuo, portanto, vivendo e sendo a dualidade da solidão. Não solidão triste, mas solidão potente.

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