Reclamamos das máscaras

ImensaMente
5 min readAug 26, 2020

Texto por: Ana C. Alem Giglio

foto feita durante momento de pandemia em 2020
foto por Karen Ueki

Desde o início da quarentena perdi as contas de quantas vezes eu ouvi reclamações em relação ao desconforto de usar as máscaras. Elas não nos deixam respirar direito, grudam pelinhos, embaçam os nossos óculos, esquentam, coçam o nariz, fazem com que as pessoas não nos vejam sorrir, escondem quando resolvemos usar uma maquiagem mais arrumadinha, mesmo que seja apenas para ir ao mercado. Subir ladeira com ela então… É falta de ar na certa! Mas não para por aí. Uma chatice quando precisamos que alguém nos escute, porque apesar do isolamento social, às vezes falar com as pessoas na rua pode ser essencial, como quando pedem informações, por exemplo, ou quando você encontra um amigo do outro lado da rua, mas nem atravessa para não escapar um abraço; nesses momentos a máscara atrapalha. E como atrapalha! Tampa nossa boca e, sem que o nosso ouvinte possa fazer leitura labial, precisamos falar mais alto. Por essas mesmas razões, também perdi as contas de quantas pessoas eu vejo com a máscara no queixo, ou simplesmente com o nariz para fora. Pode isso? Bom, poder não pode não. Vamos deixar claro que a máscara só nos protege se nosso nariz e boca estiverem dentro dela o tempo todo, se for trocada com a periodicidade adequada para a atividade que estivermos fazendo e se ela for utilizada em qualquer circunstância no caso de estarmos fora de casa, e sem ficar mexendo pra lá e pra cá, claro. Entretanto, dado o fenômeno real observado empiricamente que denota dificuldade na relação com as máscaras, precisei tirar dele uma reflexão.

As máscaras são neste momento nossas coadjuvantes e precisaremos aprender a conviver com isso pois, pelo andar da carruagem, assim continuará sendo por algum tempo. Mas, me diga: houve alguma época na sua vida em que você realmente soube conviver com as máscaras? Alguma época na qual elas realmente tiveram o papel que deveriam ter? Vivemos em um mundo que nos obriga a estamparmos uma determinada imagem para sermos aceitos, que exige que nos adequemos a padrões, que tenhamos bens materiais em troca de poder e reconhecimento, que tenhamos determinada aparência física para que nossa beleza seja considerada. Vivemos em um mundo que manda que nos enquadremos no socialmente aceito, quando este socialmente aceito é altamente questionável, tendo em vista as altas taxas de depressão, ansiedade, suicídio e outras crises em âmbitos tão profundos e, desta forma, não nos questionarmos disso torna-se altamente sem sentido. Bom, se o bolo está ficando ruim e está dando a maior dor de barriga, seria bom pararmos de seguir a mesma receita. É importante e saudável que nos adaptemos para o convívio social, que compreendamos o que se espera de nós em cada ambiente que frequentamos e para isso ao longo da vida construímos máscaras, as quais a psicologia analítica chama de personas. Contudo, se passamos a vida sem nos questionarmos a respeito da maneira e da intensidade com as quais buscamos nos enquadrar em tais padrões, passamos a vida fugindo de quem nós realmente somos pelo alto preço de sermos aquilo que as pessoas esperam que sejamos. Neste caso passamos a vida dando protagonismo às nossas máscaras, quando é apenas o papel de coadjuvante o que lhes cabe.

Daí elas incomodam mais, coçam mais o nariz, embaçam mais os nossos óculos, porque nada pode ser mais desconfortável do que abdicarmos daquilo que realmente somos, daquilo que é a nossa verdadeira natureza. O termo persona vem dos antigos teatros gregos, nos quais utilizavam-se máscaras a fim de dar vida a um personagem e também de amplificar a voz dos atores. A possibilidade de utilizarmos uma máscara para adaptarmo-nos à vida em sociedade é muito importante para nossa sobrevivência, pois nos torna mais aptos ao convívio. Entretanto, as máscaras devem nos dar uma espécie de contorno para que possamos mostrar ao mundo nossas ideias, para canalizarmos o recado que temos que dar ao mundo e que apenas nós mesmos somos capazes de dar. Já parou para pensar que cada um de nós tem um recado único e intransferível para dar? As máscaras são excelentes para tornar esse recado mais compreensível, mais palatável, mais bem recebido, mas elas não podem nunca o suprimir. Máscaras são uma espécie de embrulho de presente. Mas, para que serviriam os embrulhos se não envolvessem presentes? Quando assumimos as regras da trivialidade como sendo verdades absolutas, geralmente a vida tenta nos mostrar através de consequências como tristeza, decepção com as nossas escolhas, frustrações, irritações e outros recados que geralmente não sabemos interpretar e que ocorrem em maior intensidade quando nos desalinhamos demais com aquilo que somos de verdade. Quando nos enquadramos excessivamente naquilo que as pessoas dizem que deveríamos nos encaixar, quando evitamos demais sermos quem somos para não decepcionarmos as pessoas, estamos pagando um alto preço de uma existência inautêntica, em desacordo com aquilo que somos de verdade.

Já pensou que todas as pessoas que construíram algo de significativo no mundo, que quebraram paradigmas, que fizeram alguma diferença, em algum momento escolheram não se encaixar nos padrões da trivialidade?

Toda e qualquer invenção, ideia, descoberta, um dia foi rechaçada por alguém ou por muitos. Tudo o que é realmente bom e válido, um dia não foi visto como tal, sendo assim, uma resistência inicial existiu e existirá sempre. O fato de você ser quem você é pode gerar estranhamento das pessoas ao redor, pode suscitar críticas ou desaprovações, mas nada disso pode ser pior do que evitarmos que a nossa vida seja canal de manifestação daquilo que é verdadeiro e único e que está dentro de cada um nós. Viemos para o mundo com uma peça de um grandioso quebra-cabeças; não encaixá-la no lugar certo seria um desfecho decepcionante para uma vida. Reclamamos das máscaras, mas, na realidade, já a utilizávamos de formas bem mais incômodas e catastróficas, inconscientemente. Entretanto, já que de maneira geral percebemos muito mais quando algo é manifestado no plano físico do que quando ainda está em plano mental, que tal compreendermos as máscaras físicas como um valoroso convite a percebermos bem diante do nosso nariz aquilo que já ocorria há tempos na maneira como lidávamos com as nossas vidas?

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