Por que livros?
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texto por Stephanie Correia
No dia 29 de outubro celebra-se o Dia Nacional do Livro. A data foi instituída por causa da fundação da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que aconteceu nesse dia em 1810. Ela é uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo segundo a UNESCO, e a maior da América Latina, contando com um acervo de mais de nove milhões de itens.
Em contrapartida, a quantidade total de livros no mundo é absolutamente incerta, e o seu valor, inestimável. Falar sobre livros é falar da história da humanidade, da escrita e dos nossos pensamentos. Antes de registrarmos qualquer coisa em placas de argila, nossa comunicação era estritamente oral, ou seja, as estórias contadas passavam por adaptações cada vez que eram contadas por alguém — a estória (e portanto, a história) era constantemente atualizada para o presente. O objetivo primeiro da escrita era o registro administrativo dos povos antigos, até que, os escribas passaram a captar também as grandes epopeias. A escrita, como afirma Martin Puncher em “O Mundo da Escrita” (2019), criou a História. Desde as placas de argila, passando pelos papiros e pergaminhos, os registros ainda eram de acesso exclusivo a uma parcela pequena da população, capaz de desvendar através da leitura o que aqueles símbolos queriam dizer — a escrita e a leitura eram sinônimo de status e assim o foram durante muitos séculos. Na década de 1440 Gutenberg reinventa a prensa móvel, provavelmente inspirado em modelos asiáticos — esse é o primeiro grande salto para a democratização do acesso e a popularização dos livros. Tanto que, os livros não eram apenas acessíveis através de bibliotecas, mas um novo mercado foi instituído — podíamos comprar livros em livrarias e tê-los em casa, para revisitá-los e consultá-los sempre que quiséssemos. A livraria mais antiga do mundo fica em Lisboa (Portugal): a Bertrand foi fundada originalmente em 1732 e, após ser destruída por um forte terremoto em 1755, foi reinaugurada em nova localidade, a mesma até hoje. Com o advento da Internet e a potencial conexão entre todos os lugares e pessoas do mundo a partir da década de 1980 os livros também expandiram seu alcance. Inclusive, novas formas surgiram, como os eBooks (livros em formato digital) e os audiobooks (livros narrados).
Os livros sempre foram uma importante, se não a maior, fonte de informação. Eles são objetos que permitem que qualquer conteúdo seja ali despejado e, por causa da sua forma, acessível para outras tantas pessoas. Livros nos ensinam não só sobre o que já foi, mas são janelas de puro conhecimento, bem como nos permitem o acesso aos pensamentos mais íntimos daqueles autores que se propõem a tanto. Livros são sinônimo de educação e justamente por isso que em 1946 Jorge Amado, então deputado federal, apresentou uma emenda constitucional para a isenção de impostos sobre o papel usado em livros, revistas e jornais no Brasil. Isso ficou garantido também ao produto final do livro na Constituição de 1988. Baratear o preço dos livros possibilita o acesso das classes menos privilegiadas a esse importante item de educação. Grandes eventos literários como Feiras do Livro em universidades, a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty, fundada em 2003), a FLUPP (Festa Literária das Periferias, fundada em 2012) e Bienais do Livro por todo o país ajudaram a alavancar o mercado editorial, que cresceu no Brasil até 2014. Porém, nos últimos cinco anos esse mercado tem passado por duros golpes, como o pedido de recuperação judicial das duas maiores livrarias do país em 2018 (a saber, a Saraiva e a Cultura), a queda na quantidade de leitores no Brasil (segundo a pesquisa Retratos da Leitura, entre 2015 e 2019 houve uma diminuição de 4,6 milhões de leitores no país), e mais recentemente, a possível taxação dos livros. Em 2020, a reforma tributária proposta por Paulo Guedes traz a unificação do Cofins e do PIS (tributos federais), o que pode resultar na taxação de 12% nos livros, aumentando o seu preço final. Esse aumento implica diretamente o entrave da livre difusão da informação e do conhecimento. Se Monteiro Lobato afirmou que um país é feito com homens e livros (1932, “América”) e Antonio Candido defendia a literatura como direito humano, o que significa então para o Brasil diminuir o acesso à literatura e aos livros? Os livros passaram a virar quase um objeto de fetiche, que apenas as elites do país têm acesso e assim o querem manter. São as classes mais favorecidas que comumente tem aparecido em videoconferências com fundos falsos de bibliotecas, sendo que elas se quer são a classe que mais leem (também segundo a pesquisa Retratos da Leitura, a classe C é predominantemente a maior leitora).
Para além desses belos objetos, os livros nos levam para tempos inacessíveis, conhecemos estórias completamente diferentes das nossas, eles permitem viagens para universos reais ou criados mas, principalmente, são ponte para nós mesmos. Através dos livros podemos aprender sobre o outro mas, não menos importante (talvez até mais), aprendemos sobre o que há de mais íntimo acerca de cada um de nós. Livros expandem a nossa consciência de maneiras que são praticamente indescritíveis. Eles facilitam e estimulam a imaginação, a reflexão e o pensamento crítico. Não é a toa que eles são os primeiros a serem banidos em governos ditatoriais, como vimos acontecer durante o nazismo na Alemanha no século passado. Encerro aqui a reflexão com um trecho do livro “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury (1953). Nessa obra distópica acompanhamos o protagonista Guy Montag no seu trabalho de bombeiro — nesse futuro, os livros são proibidos e os bombeiros na verdade são incumbidos de queimar livros. A seguir, a fala do professor Faber:
“Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto. Mesmo os fogos de artifício, apesar de toda a sua beleza, derivam de produtos químicos na terra. No entanto, de algum modo, achamos que podemos crescer alimentando-nos de flores e fogos de artifício, sem completar o ciclo de volta à realidade. Você conhece a lenda de Hércules e Anteu, o gigantesco lutador cuja força era invencível desde que ele ficasse firmemente plantado na terra? Mas quando Hércules o ergueu no ar, deixando-o sem raízes, ele facilmente pereceu. Se não existe nessa lenda nenhuma lição para nós hoje, nesta cidade, em nosso tempo, então sou um completo demente. Bem, aí temos a primeira coisa de que precisamos. Qualidade, textura da informação.”
(BRADBURY, 2012, p.108)
Livros nos revelam as vicissitudes da vida, da nossa e dos outros. Livros são poderosas armas contra a ignorância. Livros são solo rico para fincarmos nossas raízes. Livros são qualidade e são profundidade. Livros, e a literatura que carregam, são universais. Portanto, batalhemos e incentivemos a sua disseminação, e não o seu contrário.