A presença que encontrei na ausência

ImensaMente
3 min readNov 19, 2021

texto por Stephanie Correia

O texto reflexivo de hoje é na verdade explicitamente individual, mas espero, ao compartilhar um pouquinho da minha experiência, promover não só a minha auto-reflexão sobre o assunto, mas também expandir percepções. Talvez seja uma tentativa vã, conforme Alberto Manguel comenta que “cada vez que usamos palavras para expressar alguma coisa, simultaneamente fazemos uma declaração de fé no poder da linguagem para recriar e comunicar nossa experiência no mundo, e admitimos nossa incapacidade de descrever tal experiência por completo”. Mas, cá está.

Ecorché Ajoelhado
Vincent van Gogh (1853–1890), Paris, Junho de 1886.

Há 15 dias minha audição no ouvido direito começou a ficar estranha e foi piorando; dois dias depois veio o diagnóstico médico: perda de audição súbita. Além da audição reduzida, as vozes (minha e dos outros) pareciam ser espelhadas em outra camada, que por sua vez era absolutamente distorcida (e horrível, diga-se de passagem). Eu não aguentava outra coisa que não fosse o silêncio, mais uma vez, o meu e o dos outros. Junto com o diagnóstico vieram os exames para investigação da possível causa, além do tratamento medicamentoso. Conforme fui informada, o rápido diagnóstico e início do tratamento ajudam no prognóstico. Ou seja, agilidade é crucial num caso desses.

De lá para cá eu já piorei, melhorei, piorei de novo e melhorei mais uma vez. Tem sido um quadro muito inconstante, em que a máxima “viver um dia de cada vez” não se aplica — vou vivendo hora a hora. Cada dia que acordava eu falava comigo mesma em voz alta (hábito que nunca tive) para consultar como estava a audição naquele dia. Muitos deles vieram acompanhados de frustração pois a melhora não tinha vindo.

Esgotado
Vincent van Gogh (1853–1890), Haia, Novembro de 1882.

Desde o início a emoção mais forte que senti foi o medo. Além do imenso incômodo auditivo, eu senti muito medo. Medo porque não sabia (e ainda não sei) a causa, medo de não melhorar, medo de piorar depois de ter melhorado, medo de nunca mais escutar como escutei, medo de não mais poder fazer as coisas que eu gostava. Eu não podia mais conversar, não podia falar nem escutar os outros, não podia escutar música para relaxar, não podia andar na rua por causa dos infinitos barulhos, não podia nem fazer movimentos com a cabeça porque até o meu equilíbrio estava afetado. A perda da minha audição me fez lembrar de tudo o que eu mais gostava e que estava impossibilitada de fazer. Essa ausência me trouxe muito medo, mas trouxe também muita gratidão. Me senti imensamente grata por tudo o que eu já tinha ouvido e feito com as minhas belas orelhinhas! Me senti grata por ainda escutar tão bem com o ouvido esquerdo, por ter a minha visão e meus outros sentidos para poder me relacionar com o mundo. Me senti grata por, apesar das limitações, ainda poder ler meus livros e trocar mensagens escritas com quem amo. Me senti infinitamente e quase que indescritivelmente grata por ter pessoas tão maravilhosas e incríveis ao meu redor, que me encheram de tanto amor e cuidado que eu transbordei.

Flor de amendoeira
Vincent van Gogh (1853–1890), Saint-Rémy-de-Provence, Fevereiro de 1890.

Por ora, sigo me cuidando e buscando formas de contornar o medo, quem sabe através da esperança. Não uma esperança desconectada da realidade, aquela desmedida que às vezes beira à imprudência; mas uma esperança calma, ancorada no momento presente. Confesso que ter esse ânimo de espírito tem sido incomensuravelmente mais fácil por causa daqueles que eu amo e me querem bem. Tenho medo, mas ah…! Que sorte a minha!

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