“A casa de bonecas” (de Katherine Mansfield) e Ética

ImensaMente
3 min readJul 9, 2021

por Stephanie Correia

Katherine Mansfield foi uma escritora neozelandesa de contos e aqui comentaremos um dos seus últimos textos, escrito em 1922: “A casa de bonecas”. Nele, acompanhamos a chegada de uma belíssima casa de bonecas de brinquedo na residência da família Burnell. A casa era cheia de pequenos detalhes, incluindo papel de parede e um lustre que chamou a atenção de uma das filhas, Kezia. As três meninas mal podiam esperar para contar para todas as colegas da escola sobre o seu mais novo (e suntuoso) brinquedo. E Isabel, a mais velha, logo deixou claro que ela quem seria a portadora dessa notícia. Além do gosto de contar para as outras crianças, elas poderiam levar duas amigas por dia para conhecer a casa de bonecas; mais uma vez, a prioridade de escolha era da primogênita.

Na escola, porém, duas irmãs sequer chegaram perto das Burnell para escutar a descrição da casa de bonecas — Lil e Else Kelvey, filhas de lavadeira e um pai que supunha-se estar na prisão. Aquelas meninas, assim como as outras crianças da escola, tinham aprendido que havia uma hierarquia a ser seguida e devidamente respeitada, e essa hierarquia era baseada na condição social dos seus pais. Até que, Kezia pergunta para a mãe se poderia convidar pelo menos uma vez as irmãs Kelvey para conhecer a casa de bonecas, as únicas que ainda não tinham a visto. A resposta que recebeu foi “claro que não”, seguido de “você sabe muito bem por que não”.

Num outro dia em casa, enquanto Kezia estava sozinha no quintal (lugar onde ficava a famosa casa de bonecas) as irmãs Kelvey apareceram por ali, do outro lado do portão. Kezia transgride as regras que aprendeu e convida as duas irmãs mais pobres da escola para irem lá ver a casa de bonecas. Após breve conversa, as irmãs Kelvey aceitam de maneira hesitante. Durante alguns minutos as três ficaram admirando cada cantinho daquela esplêndida casinha, momento logo interrompido pela tia de Kezia, quem deu o presente, que manda Lil e Else embora, enxotando-as “como se fossem galinhas”.

Foto de Ron Lach

Ao longo do conto nos são narradas as diferenças sociais vividas pelas famílias e como elas ditam os comportamentos de toda a comunidade local. Podemos dizer, portanto, que era a moral da época esse tipo de distinção e discriminação feita a partir da classe social e renda. “Moral” vem do latim “moris”, que significa costumes. Trata-se do conjunto de hábitos e costumes que orienta a vida em grupo num dado local e momento, ditando o que é certo/errado, adequado/inadequado.

A “Ética” vem do grego “ethos” e está ligada ao questionamento dos valores que guiam os comportamentos humanos. A Ética é o exercício reflexivo que se propõe universal, dirigida para aquilo que já se consolidou na sociedade. Ao agir de acordo com a moral (ou seja, os costumes vigentes naquele lugar e época), não necessariamente o indivíduo estará em consonância com a Ética. Ao refletir criticamente de maneira ativa e questionar “será que isso aqui que está estabelecido faz sentido? É correto?” a pessoa pode experimentar diferentes formas de pensar e agir conscientemente, sendo agente no mundo. A Ética irá, portanto, tratar principalmente das nossas relações interpessoais e das nossas ações, bem como suas consequências e decorrentes responsabilidades.

No conto, quem se mostra indivíduo ativo e crítico, mesmo que de maneira acanhada, é a jovem Kezia, ao perguntar se todas as crianças poderiam ser incluídas na contemplação da formosa casa de bonecas e ao convidá-las para dentro do seu quintal apesar da negativa da mãe. A maioria das personagens estavam agindo de acordo com a moral da época do início do século XX, mas muitos valores eram fortemente negligenciados, como por exemplo a empatia, a generosidade, a justiça e o respeito. Nesses pequenos gestos, Kezia pode promover ainda que por um breve momento, uma relação mais igualitária com aquelas duas outras meninas.

Como sempre, a Literatura nos permite expandir nosso olhar acerca de diferentes aspectos. Esse conto pode ser analisado sobre tantas outras perspectivas e, dentre elas, trouxemos a reflexão sobre a Ética e como ela, sendo profundamente filosófica, está intrinsecamente ligada nas nossas vidas cotidianas e todos aqueles com quem nos relacionamos.

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